Tem amor
que não morre. Alguns desidratam, deixam de existir, caem no completo e
total esquecimento. Mas os que não morrem, não morrem; talvez até se
modifiquem, transmutem, mas não, não morrem. É com essa credulidade que tento justificar
um dos meus muitos amores que não morreram. Não sei exatamente como começou,
dado ao considerável hiato temporal, ou atemporal, como quiser, entre o encontro, a
separação e o fugaz reencontro. Mas sei que nunca deixou de coexistir paralelamente
aos tantos outros que se sucederam.
Nós ainda éramos
dois adolescentes descobrindo o mundo e tentando dar conta das provas que a
puberdade nos impunha, com seus segredos místicos. Para nós, o caminho mais audaz
por onde nos atrevíamos caminhar era um beijo caloroso e uns amassos, sentados no
banco da praça olhando pro chafariz que nos presenteava com um colorido de arco-íris pelas
gotículas de água borrifada, atravessadas pelas luzes artificiais. Nos
cerca de seis meses que mantivemos válido o “quer namorar comigo?”, essa foi a
mais ousada peripécia que nos permitimos. Mas isso não queria dizer que, por
não termos ultrapassado a linha proibida da libido, nos faltasse algo para
manter os batimentos cardíacos na casa dos 200 bpm, quando nos encontrávamos.
Bastaram seis
meses – ou um pouco mais, ou um pouco menos, não sei – para esse amor se incrustar
como tatuagem em nossas almas. Também não cabe aqui desfiar como se deu o
rompimento, porque a importância da pureza exalada por aqueles dois seres, quando
estavam juntos, se sobrepôs desde sempre a qualquer limite de tempo preestabelecido.
A roda
gigante da vida rodou, rodou. Amores giraram junto com ela. Alguns deram várias
voltas e permaneceram plácidos como se ali fosse seu porto de ancoragem; outros
permaneceram o suficiente para perceber que não valia a pena dar mais que uma
volta; houve também aqueles que queriam se jogar de lá de cima, na impaciência de
completar os 360 graus. A maioria teve começo, meio e fim, como um texto didático
que se propõe a contemplar o leitor com uma narrativa coerente e coesa. Mas
aquele amor não. Ele ficou. Sem pé, nem cabeça, sem começo, sem meio e sem fim.
Mas ficou. Mesmo depois que o parquinho da adolescência partiu levando consigo a
sua roda gigante e deixando em seu lugar, um chão firme para se pisar (premissa
da vida adulta), acho que nós nunca nos esquecemos um do outro.
E aqui começa
onde quero chegar: depois de muitos anos, as obrigações do trabalho nos puseram
frente a frente e o sentimento de revê-la pode ser comparado a um sonrisal que,
enquanto está quieto dentro do envelope, se mantém fiel às características de
comprimido, mas quando lançado num copo d’água, se desmancha todo até diluir
por completo.
Foi esse o
sentimento que tive ao me deparar com a menina dos seios mais lindos do
universo, que uma vez – e tão somente uma vez –, tive a oportunidade contemplar,
com o olhar enviesado, quando ela descuidadamente se inclinou em minha direção
deixando à mostra através da blusa decotada, os bicos rosados da mulher que
despontava dentro daquele corpo, ainda franzino, mas em transição.
Os
cumprimentos de praxe de quem não se vê há muito tempo foram protocolares, mas alguma
força do universo nos congelou num olhar silencioso e terno. O abraço que se sucedeu
também tinha uma liga de antimônio, fundido ao calor dos nossos corpos e que se
moldou à forma onde fora depositado. Eu senti a sensação de ter encontrado o
encaixe perfeito para o último pedacinho de um quebra-cabeça de 10 mil peças.
Foi recíproco, não tenho dúvidas. Disfarçamos,
porque o silêncio nos pôs incomodados com a falta de diálogo e a gigantesca
interrogação que se precipitou nas nossas cabeças. Afinal de contas, o que era
aquilo? Que sentimento louco era aquele que se apoderou de duas pessoas que não
se viam há décadas, mas que se seguraram dentro de um abraço? Diria Nietzsche: como dois navios que ficaram placidamente no
mesmo porto e sob o mesmo sol. Parecendo haver chegado ao seu destino e ter
tido um só destino.
Mas se a
intenção do malvado destino era brincar de esconde-esconde, a minha, a partir
daquele momento, era me tornar parte do mundo da mulher que desgrenhou minha
fita de DNA e amalucou meu superego. Eu precisava vê-la novamente, mas longe,
bem longe de lugares profissionais. Um vinho em outro dia, quem sabe? Ela
aceitou.
A primeira
garrafa hidratou a conversa, que se manteve comportada na esfera da vida
enfadonha e regrada de quem estuda e trabalha para sobreviver. Em meados do
segundo Cabernet Sauvignon, o papo já
fluía com mais deitadas de cabeça no meu ombro, deixando exalar o perfume amadeirado, todas
as vezes que se ria de alguma palhaçada minha. A essa altura meus neurônios não
definiam mais o que era real e confesso que daquele sonho, eu jamais queria
despertar.
O táxi nos
levou ao hotel onde entramos de mãos dadas enquanto eu me sentia como se segurasse
as mãos de uma semideusa do Olimpo. O silêncio era tanto, que destacava dois
corações disputando quem fazia as vezes de surdo e contra-surdo na nossa escola
de samba particular.
O deus do
silêncio determinou a toada daquela noite e nós permanecemos assim por um longo
período, nos entreolhando, como se buscássemos misturar nossas almas, pelos
olhos um do outro. Sim. Nossas almas, nossos corpos se misturaram. Adormecemos
assim: respirando um, a respiração do outro. No dia seguinte ficou somente a
promessa de nos rever, quem sabe, em outra órbita
estelar.