Ginho de Souza
Você já notou
que no dia a dia, nós nos valemos de expressões que julgamos corriqueiras e de
fácil entendimento para definir uma ideia, porém sem sequer nos preocuparmos em
saber de onde e como surgiu tal frase ou palavra? No universo prisional então,
isso acaba sendo uma constante, principalmente para os agentes de segurança
penitenciária que, por força da função, lidam diretamente com os presos. Eles
[agentes] têm de decifrar um dialeto paralelo à sociedade que é usado pelos
internos, com uso demasiado de gírias.
A
história conta que no Brasil de décadas passadas – mais precisamente na então
Penitenciária de São Paulo (que era de população masculina, atual Feminina de
Sant'Ana), diante da rigidez imposta no cárcere, onde os presos eram proibidos
até de conversarem entre si, eles desenvolviam várias outras formas de
comunicação, algumas não verbal, como o “abano”, por exemplo.
Alguns chegavam até
a “namorar” vários anos com presas da penitenciária feminina, que fica pelo
menos a 200 metros de distância uma da outra, sem nunca tê-las visto ou tocado.
A técnica consistia em trocar as letras do alfabeto em números de vezes que se
abanava um pano. O detalhe é que ninguém podia “abanar” com o abano do outro
ou, trocando em miúdos, ninguém podia “falar” com a namorada do outro.
No livro Código
de Cela - o Mistério das Prisões, o pedagogo e profundo conhecedor do sistema
prisional paulista, Guilherme Silveira Rodrigues, além de contar histórias antológicas
que viveu ao longo do tempo em que trabalhou (e ainda trabalha) em
penitenciárias de São Paulo, também define alguns termos e palavras criadas no
cárcere e que muitas vezes saíram dos parâmetros da prisão para serem usadas à
revelia em nosso cotidiano. O glossário, se é que podemos assim definir, traduz
expressões como: pão (esse pãozinho francês que compramos na padaria) era
chamado de marroco na prisão; o vaso sanitário, por exemplo, ainda é conhecido
como “boi”, um simples recado anotado em papel chama-se “pipa”... e por aí vai:
café é moka (em referência à famosa marca do produto), viatura é bonde, etc.
Dentre tantas
esquisitices, o que chama a atenção é a palavra “boia”. Mesmo quem não está preso sabe que a hora da
boia é a hora do almoço. Mas por que boia? De onde e como surgiu esse termo
para denominar alimento ou hora de se alimentar? Em uma pesquisa rápida,
consegui algumas explicações que, se não eliminam a dúvida por completo, ao
menos dão algumas pistas para que formemos uma opinião.
O dicionário Michaelis é pragmático ao descrever boia como “Corpo flutuante destinado a marcar o lugar
de qualquer coisa submersa, como, por exemplo, uma âncora, ou destinado a
indicar perigo, ou passo difícil; Pedaço de cortiça, nas redes de pesca, para
que não afundem; Qualquer comida”.
O wiktionary diz
que “A origem do termo vem da comida servida nos quartéis, prisões ou campanhas
militares – há relatos de que foi servida na Campanha de Canudos – e que
continha feijões mal cozidos ou podres e que por isso ficavam boiando no prato
ou cumbuca. Então ‘boia’, quando utilizada no sentido de comida, tem sua origem
na imagem de um prato de comida com feijões boiando”.
Outra análise
curiosa vem do site de etimologia Origem da Palavra: “Boia viria do Latim BOIA,
‘tala de couro’, de BOVIS, ‘boi’, usada para designar todo gênero de amarras e
laços. Passou a designar também a bola de ferro ou madeira usada para
dificultar o deslocamento dos presos nas galés¹. Havia gente tão infeliz que se
oferecia para esse trabalho horrível apenas em troca de comida e abrigo; eram
chamados de ‘banaboias’. Esta palavra passou a significar “tolo, estulto,
abobado”, pois representava uma pessoa que achava boa aquela comida. Daí a
ideia de boia como comida, alimentação”.
Porém, a explicação
mais interessante e que se encaixa perfeitamente no contexto penitenciário fala
de uma presiganga² e está no livro História das prisões no Brasil: “A nau³
Príncipe Real, inutilizada para o serviço de combate e desarmada, passou a ser
usada como prisão, depois de transportar de passagem a Rainha Dona Maria I e o
príncipe regente Dom João, por ocasião da transferência da Corte portuguesa
para a colônia da América em 1807”.
O texto explica
que nas primeiras décadas do século XIX, a Santa Casa de Misericórdia fornecia
assistência alimentar aos presos e os alimentos eram transportados do
continente para a embarcação, em caldeirões sobre boias.
Fica a sugestão
para pesquisar ou simplesmente refletir
GS é
jornalista
¹Tipo de embarcação movida a remo
onde pessoas eram condenadas a trabalhos forçados, muito usada a partir do
século VI
²Navio usado como prisão, ou que
recolhe prisioneiros
³ Grande embarcação de guerra ou
mercante
Fontes:
Livro: História das prisões no
Brasil
Autor Clarissa Nunes Maia
Editora Rocco, 2009
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